Relatório Denúncia


Relatório-Denúncia com Indicativos de Desrespeito na Assistência ao Parto Elaborado pelo R.A.M.A. - Rede de Apoio à Maternidade Ativa
A ser apresentado na Audiência Pública do Ministério Público
Data: 23.04.2012

O presente documento está focado em 3 grandes eixos que são considerados, em nível nacional, indicativos de desrespeitos à mulher durante o momento do parto, tanto na rede pública quanto na rede privada. Os temas em questão são:

1- Excesso de cesáreas.
2- Violência institucional na atenção obstétrica.
3- Desrespeito à Lei 11.108, a "Lei do acompanhante".

Trazemos tal discussão nesta audiência por considerarmos que à nivel local o quadro se configura do mesmo modo que à nível nacional; e por acreditarmos que o Ministério Público tem poder de atuação neste quadro vigente, e assim pode fazê-lo. Os indicativos aqui expostos são oriundos de estudos baseados em evidências e de nossas experiências profissionais, configurando assim um pouco da assistência ao parto na cidade de Natal.


1) Excesso de cesáreas:

De acordo com o mais recente relatório da UNICEF, o Brasil possui a maior taxa de cesáreas do mundo. É necessário e urgente adotar estratégias efetivas para reduzir o índice de cesáreas desnecessárias. A cesárea é uma cirurgia de médio a grande porte. Submeter mulheres a cirurgias desnecessárias é uma violação do direito à saúde e à integridade corporal.
O excesso de cesáreas está estreitamente relacionada com indicações infundadas por parte dos médicos, tais como circular de cordão, pós-datismo (passar das 40 semanas), macrossomia fetal (bebê grande demais), bacia estreita, falta de dilatação, bolsa rota, cesárea prévia, entre outros, sendo que estes fatores não estão baseados em evidências científicas. Tais justificativas camuflam disponibilidades pessoais de horários e dias, e chegam até as mulheres com demasiado peso, sem a clareza devida de suas reais consequências, colocando-as a pensar que estão fazendo o melhor pra si e pros seus filhos, quando o contrário acontece. O que se observa são bebês com insuficiência respiratória, aumento da mortalidade e morbidade maternal devido as hemorragias e infecções pós-operatórias, aumento de malformações placentárias subconsequentes, etc.
De acordo Sousa ASR, Amorim MMR e Porto AMF, no artigo “Condições frequentemente associadas com cesariana, sem respaldo científicos”, muitas das condições apresentadas não representam indicações absolutas de cesariana, e o parto vaginal deveria ser preferido em vários casos, exceto em algumas situações especiais, como mostra quadro abaixo:

Nos hospitais privados na cidade de Natal como Promater e Papi, as taxas de cesárea chegam a 99%, ultrapassando a taxa nacional de 60%. As cesáreas sistemáticas e abusivas nestes lugares promovem a reserva prévia de leitos, impossibilitando mulheres que queiram parir pela via vaginal de terem leitos disponíveis.
Muito se alega que as mulheres brasileiras na medicina privada simplesmente não desejam partos normais, o que é totalmente inverídico. Três diferentes pesquisas chegaram praticamente aos mesmos resultados apontando que a maioria das brasieiras deseja parir normalmente. Vamos a elas:

• Em entrevista realizada no pós-parto, mais de 72% das mulheres que preferiam partos normais, tiveram cesáreas em hospitais privados (http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2001000300007).
• Este valor é comprovado em outro estudo, mas a taxa é ligeiramente maior, 74,2% ¹.
• 89,4% das mulheres que tiveram oportunidade de experimentar os dois partos preferiam o parto normal.
Restou apurado que “A incidência de cesariana variou segundo a categoria de internação, observando-se um gradiente crescente à medida que se elevou o padrão social das gestantes, não havendo correspondência com o risco obstétrico”. Portanto, constatou-se grande paradoxo, na medida em que a quantidade de cesáreas é maior nos grupos de menor risco, melhor acompanhamento pré-natal e menor incidência de doenças.

No estudo sob menção, baseado em dados e estatísticas da década de 90, os autores tentam buscar explicações extratécnicas para a variação de padrões assistenciais e tentam esclarecer esta diferença pelo tipo de relação que se estabelece entre o médico, a paciente e seus familiares. A justificativa é de que como a cesárea está sendo culturalmente difundida no Brasil como uma resolução “segura” ao parto e sem sofrimento, tem sido incorporada por quem a deseja e tem o poder de custeá-la. Por isso, transformada num objeto de consumo acessível segundo o padrão de renda.
Todavia, outro estudo mais recente, realizado na cidade de Belo Horizonte e apresentado no XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP (Associação Brasileira de Estudos Populacionais), detalha melhor a preferência por via de parto, segundo nível de escolaridade, idade e classe econômica. A conclusão foi: “A maioria absoluta de mulheres disse preferir o parto vaginal independente de sua idade, paridade, nível de escolaridade, tipo de hospital em que teve o parto e forma utilizada para financiá-lo”.

E também:
“Mais da metade das mulheres que tiveram um parto
cesáreo não conseguiram efetivar sua preferência por um
parto por via vaginal, enquanto apenas 8% das que tiveram
um parto normal desejavam um parto operatório. Como a
nossa amostra foi composta de números iguais de mulheres
que cada tipo de parto e o índice de cesáreas nos hospitais
que atendem apenas clientela particular ou de planos de
saúde alcança 80% do total de partos, a generalização
desses resultados equivaleria a dizer que mais de 70% das
gestantes que neles se internam têm um parto operatório
contra a sua expectativa, uma cifra maior que a de outros
tipos de hospital” (PERPÉTUO, BESSA & FONSECA,
2000).
Portanto, apuramos um índice de mais de 70% de mulheres que têm seus desejos frustrados, sendo operadas quando desejariam um parto normal. Outro estudo, realizado em 2004, mostra o desencontro de informações entre mulheres e seus médicos, afirmando que: “O conceito de que a principal causa do aumento da taxa de cesárea é o respeito dos desejos das mulheres por parte dos médicos não tem sustentação na opinião declarada pelas mulheres”.

Portanto a alegação dos médicos, de que as mulheres preferem o parto cirúrgico, justificando os altos índices no país, resta afastada. É certo que uma pequena parcela delas, mal orientada durante as consultas de pré-natal, opta voluntariamente pela cesariana, iludidas pelos argumentos dos obstetras de que a cirurgia seria mais segura, evitaria a perda do desempenho sexual e traria menos dor à parturiente. Porém, como acima dito, a esmagadora maioria das mulheres deseja o parto normal, não o conseguindo na rede de saúde suplementar.


- Relatos de Casos:

As doulas da R.A.M.A. presenciaram alguns casos de cesáreas não justificáveis; sendo que os médicos que acompanhavam as grávidas utilizaram de chantagem e pressão psicológica em cima das mesmas, fazendo-as se sentirem culpadas se optassem por outras alternativas.

Caso1: L.A. teve sua bolsa rompida naturalmente às 5:30 da manhã, e após 6 horas, foi pra sala de cirurgia, sendo que antes mesmo da bolsa romper a médica já tinha iniciado um terrorismo psicológico sobre a dor do parto com a mesma. Não foi dado o direito à L.A. de esperar as 24 horas para que o trabalho de parto se instalasse e ela achou que estava fazendo o melhor pro seu filho, e assim justificou para si mesma a escolha feita.

Caso 2: R.A. teve o terrorismo instalado desde cedo com o tamanho do bebê (macrossomia fetal) e um diagnóstico de “bacia estreita”. Não lhe foi dada a opção de esperar o trabalho de parto se iniciar, e a cesárea foi marcada pra antes de um feriado, logo após uma consulta onde a médica falou pra grávida “você quer matar seu filho?”.

Caso 3: T.R. tinha uma cesárea prévia, e mesmo a médica apoiando um PNAC (Parto Normal após Cesárea) durante todo o pré-natal, indicou uma cesárea de urgência após consulta sem justificar as reais causas da urgência, sendo que T.R. saiu do consultório por volta das 17:30 e a cirurgia só aconteceu depois das 19h. Que urgência?

Caso 4: M.V., primigesta que desejava um parto normal mas, segundo a sua médica, era impossível tendo em vista a posição pélvica do bebê no final da gestação. Ela, então, pediu para esperar o início do trabalho de parto por saber que este é o melhor indicativo de que o bebê está pronto para nascer. Mas foi imposta a condição de agendar a cirurgia para garantir o leito na maternidade.

Caso 5: K.B., estava certa do seu parto normal, contanto que não ultrapasse das 40 semanas, pois, segundo a obstetra, este é o limite de tempo de uma gestação. Nas 39 semanas de gestação chegou a procurar uma segunda opinião, onde a médica afirmou que a gravidez poderia se estender por mais uns 10 dias mas a mesma se recusou a acompanhar a gravidez de K.B. naquela altura dos acontecimentos, alegando ética médica. Desamparada, voltou a primeira obstetra que marcou a cirurgia para o dia seguinte.
Em todos os casos relatados, as médicas apoiavam o parto normal, mas ao se aproximar das 36 semanas iniciaram seus terrorismos psicológicos, justificando a cesárea com motivos ilegítimos, baseando-se em exames desnecessários, e sem dar nenhum apoio emocional às parturientes que se sentiam confusas e dotadas de culpas, ao ter que “escolher pela vida de seus filhos”.



2) Violência Institucional na atenção obstétrica:

De acordo com um artigo publicado na folha de São Paulo dia 24/2/2011, baseado num estudo realizado pela fundação Perseu Abramo e o SESC em 2010, em 25 estados da federação e 176 municípios do pais, constatou-se que: Uma em quatro mulheres entrevistadas, ou seja, 25% delas que tiveram coragem de expressar, declaram ter sofrido violência durante o atendimento ao parto, tanto nas maternidades públicas (27%) quanto particulares (17%).

A violência durante o parto é uma prática que já está institucionalizada e é uma violação dos direitos humanos como foram definidos pela ONU. A mulher tem o direito não somente de poder parir aonde ela quiser e como ela quiser, mas tem o direito de ser tratada com dignidade e com respeito durante todo o processo de parto. A resolução de 2009 emitida pelo Conselho de Direitos Humanos das Organização das Nações Unidas sobre a redução da mortalidade materna e suas causas (entre outras, sabemos hoje que são os modelos de atenção obstétrica inadequados e assistência de baixa qualidade) apela para ações orientadas a reduzir a mortalidade materna e a promover um atendimento de qualidade, sem discriminação de gênero, de raça, ou orientação sexual.
Muitas são as violências sofridas pelas mulheres. Nos hospitais do SUS, as mulheres são violentadas verbalmente, impedidas de ter privacidade em leitos compartilhados, há falta de confidencialidade, e na maioria das vezes são submetidas a conversas paralelas da própria equipe dos profissionais de saúde, o que as impede de se sentirem seguras e protegidas, e assim, se entregarem ao processo do parto. Seus gritos são censurados e são obrigadas a ouvir comentários discriminatórios e amendontradores. Não há comunicação dos profissionais de saúde sobre as intervenções a serem feitas, sendo elas muitas vezes desnecessárias e injustificadas, tais como episiotomia, manobra de kristeler, cesáreas desncessárias, impedimento de deambular, etc. É uma falta de respeito para com a dignidade da mulher e uma violência de gênero legalizada! Nos hospitais privados o mesmo acontece, sendo que a violência verbal é camuflada e as violações físicas através das intervenções são também normatizadas.

- Relatos de Casos:

Caso 1: M.J, chega a maternidade privada em trabalho de parto avançado mas é informada de que não há leitos disponíveis tendo em vista que parte dos leitos obstétricos estariam reservados para o dia seguinte. A enfermeira do plantão checa uma vaga no setor de cardiologia, mas após uma conversa séria travada entre obstetra e setor de internamento, a maternidade resolve disponibilizar uma suíte para M.J.

Caso 2: Durante parto assistido por enfermeira-obstetra em maternidade municipal, pediatra do plantão se recusa a prestar assistência ao recém-nascido porque o parto não foi “feito” por um médico, usando o termo “palhaçada” para se referir ao ato.

Caso 3: S.M., teve seu filho por meio de uma cesariana após passar por trabalho de parto onde alcançou dilatação completa mas o bebê não desceu pro canal de parto. Relata ter sido muito judiada, “me cortaram toda” (episiotomia) e “empurraram tanto a minha barriga que fiquei sem ar “ (manobra de kristeller).

Caso 4: V.B., em trabalho de parto avançado, quase em período expulsivo, encontrou alívio na posição de cócoras e no banho de chuveiro e pediu que “pelo amor de Deus” não a tirassem dali. Obstetra ignorou o pedido e disse que só concluiria o parto caso ela deitasse na cama porque parto naquela posição ele não acompanha.

3) Desrespeito à Lei 11.108, a “Lei do Acompanhante”:

Faz-se necessária a fiscalização do cumprimento da Lei do Acompanhante (Lei Federal 11.108/05) e da RDC 36 da ANVISA, que garantem a presença de um acompanhante de livre escolha da mulher no pré-parto, parto e pós-parto imediato, independentemente de o nascimento ocorrer por cesárea ou parto normal. É de atribuição da Vigilância Sanitária fiscalizar, advertir e multar o descumprimento da RDC 36. Conforme consta no site do Ministério da Saúde, 14 estudos científicos brasileiros e internacionais realizados em mais de cinco mil mulheres demonstraram que as gestantes que têm um acompanhante no parto e no pós-parto ficam mais tranqüilas e seguras durante o processo, o que contribui para a redução do tempo do trabalho de parto e para diminuir o número de cesáreas.
Como explica a técnica da coordenação de saúde da mulher do Ministério da Saúde, Daphne Rattner, "Durante o trabalho de parto, é normal a mulher sentir medo e insegurança. Esse medo muitas vezes aumenta a dor das contrações e a experiência do parto torna-se traumática". Acrescenta que "A presença do acompanhante diminui esses obstáculos e transforma o acontecimento em uma experiência positiva e inesquecível".
O Ministério da Saúde ainda reconhece que a permanência de outra pessoa junto à parturiente, durante o parto e pós-parto contribui ainda para reduzir a possibilidade de depressão pós-parto, doença que hoje atinge cerca de 15% de todas as mães do mundo.
A legislação sob exame representa, assim, um grande avanço no caminho da redução das cesarianas e humanização do nascimento, avanço que, novamente, não foi acompanhado por todas as maternidades do nosso município que ainda impedem a parturiente de ter um acompanhante da sua escolha durante o parto e pós-parto.

Com base nos dispositivos legais sob exame, passamos a elencar algumas propostas de ação a serem adotadas pela Agência Nacional de Saúde, todas no âmbito de sua competência fiscalizatória e regulamentar, podendo resultar em reduções efetivas dos índices de cesariana. Ressaltamos que várias das sugestões a seguir já estão sendo adotadas pelo Ministério da Saúde no Sistema Único de Saúde.

PROPOSTAS DE SOLUÇÕES

1) A adoção pelos planos de saúde do paradigma já existente no Sistema Único de Saúde, fixando-se tetos máximos para o pagamento de cesáreas, conforme percentuais decrescentes para cada ano.

2) O aumento dos valores pagos aos médicos pelos convênios para os partos normais, bem como a diminuição dos valores pagos por cesarianas.

3) Que enfermeiros obstetras possam ser credenciados para realizar partos normais nos hospitais particulares.

4) Incentivo à criação de suítes PPP (Pré-Parto, Parto e Pós-PArto) nas maternidade privadas e públicas como uma maneira segura de garantir acesso ao leito obstétrico àquelas mulheres que desejam o parto normal.

5) Planos de saúde tornarem públicas as taxas de cesáreas dos obstetras e maternidades que reembolsa.

6) Que a parturiente tenha direito de ser acompanhada por uma pessoa de sua preferência durante todo o trabalho de parto nos estabelecimentos da rede de saúde suplementar, independentemente de taxas e de autorização médica.

7) Que a presença da doula seja incentivada e jamais coibida por ser a profissional em condições de apoiar física e emocionalmente a parturiente.

8) Que seja vedado aos planos de saúde excluírem de sua cobertura o ressarcimento e/ou pagamento dos honorários de médicos obstetras ou de enfermeiros obstetras, em casos de partos domiciliares.
9) Que seja garantida uma fiscalização sistemática da qualidade da assistência obstétrica e identificação da violência que existe de maneira endêmica nos hospitais públicos e privados, pela agências governamentais adequadas, assim como a agilização da aplicação e fiscalização do respeito à lei 11.108 de garantia da presença de um acompanhante de escolha da mulher durante o trabalho de parto, no parto e no pós-parto.

10) Que seja dado o direito à informação sobre os procedimentos, com exigência de que haja consentimento da Mulher para as intervenções as quais for sujeita no parto como Episiotomia, Cesárea, Indução etc. incluindo a erradicação da prática humilhante de algemar presidiárias durante o trabalho de parto.
11) Que seja criado de forma sistemática, em cada região de saúde, comitês de morte materna em que as organizações da sociedade civil e governamentais avaliem em conjunto indicadores do acesso e qualidade da atenção obstétrica, incluindo as taxas de cesáreas, alem de estudar cada morte materna observada no município para identificar suas causas e evitabilidade, com efeitos na qualidade da assistência.



Bibliografia

Are Brazilian women really begging for cesareans? Página 10, tabela 3. Autores: HOPKINS, Kristine; POTTER, Joseph E. Link: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/PDF/1998/a160.pdf

Parto cesáreo: quem o deseja? Em quais circunstâncias? Página 5, “As mulheres preferem cesárea?Autores: BARBOSA, Gisele Peixoto; GIFFIN, Karen; ANGULO-TUESTA, Antonia et al. Cad. Saúde Pública. [online]. nov./dez. 2003, vol.19, no.6 , p.1611-1620.

Cesárea por conveniência e ética médica. Autores: FAÚNDES, Aníbal; PERPÉTUO, Helena Oliva.Link: http://www.cremesp.org.br/revistasermedico/sermedico040506_2002/sintonia.htm

“Parto Normal ou Cesárea”, DINIZ, Simone Grilo e DUARTE, Ana Cristina, Editora UNESP

Cadernos de Saúde Pública, A operação Cesárea no Brasil. Incidência, tendências, causas, conseqüências e propostas de ação - Conseqüências Econômicas dos Altos Índices de Cesáreas – in http://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0102-311X1991000200003&script=sci_arttext

http://www.usp.br/agen/?p=94696

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