Relato de Parto Domiciliar - Mãe Rosário & Bb Emanuela


(Aviso que é uma longa história...) Tudo começou há alguns anos, logo após o meu primeiro parto. Giane nasceu de parto normal repleto de intervenções. Foi um pós-parto relativamente tranquilo com uma excelente recuperação. Mãe e bebês bem, saudáveis, o que mais eu poderia desejar? Mas algo me dizia que eu poderia ter mais do que aquilo. A sensação de que algo estava faltando era gritante e lá fui eu, em meio às minhas inquietações, investigar o me faltava. Foi quando, ocasionalmente, comprei uma revista do universo infantil e vi uma reportagem sobre parto humanizado que indicava o nome de uma comunidade no Orkut, a “Cesária? Não, obrigada!”. O título despertou a minha curiosidade. Pronto, estava feito. Ali iniciava a minha jornada em direção a um novo mundo, a uma nova vida. Forcei um convite para entrar na rede social e em poucos dias iniciava a minha participação nos fóruns de discussão.

Após alguns dias de leitura a minha participação foi crescendo e conheci a lista de discussão da parto nosso. Nomes como Ingrid Lofti, Ana Cris, Ric Jones, Ana Paula Caldas, Socorro Moreira, Melania Amorim se tornaram familiares para mim. Eu me deliciava cada vez que lia os escritos dessa turma. E com as informações vieram certezas. A primeira delas foi a sensação de violência e roubo da minha feminilidade, do meu sagrado, da minha capacidade de parir naturalmente. Até hoje agradeço a Deus o livramento de uma cirurgia desnecessária, porque a equipe que me acompanhava não estava habituada a “fazer” partos normais. 


Cair na real foi extremamente fácil. A parte mais difícil na história foi convencer meu marido, Osvaldo. Um dentista altamente tecnocrata que abominava a idéia de um parto longe de um hospital. Recebi conselhos primorosos (e uns bons puxões de orelha) de grandes amigas reais-virtuais. Em alguns momentos pensei em desistir. Em outros, planejava um TP escondido com parto desassistido trancada no banheiro de casa só para fugir dos protocolos da maternidade. Fiz cursos de aleitamento materno, de humanização do parto, de doulas, workshop sobre parto domiciliar. Conheci o anjo da minha vida, Edilsa Pinheiro, obstetra humanizada do Rio Grande do Norte. Passei a trabalhar com ela numa maternidade pública e ali colocávamos em prática nossos ideais em favor de um gestar e parir respeitoso. A cada doulagem uma energia gostosa tomava conta de mim e assim permanecia por dias com um sorriso estampado no rosto, uma alegria que me fazia sentir o verdadeiro valor da vida.  E Osvaldo percebeu que era pra valer. Ele entendeu que precisava dar um passo em minha direção e finalmente as coisas começaram a fluir. Levei quase cinco anos para o aproximar dos meus ideais. Neste período amadurecemos a nossa relação, a nossa parentagem, a nossa vida profissional. Posso dizer que vivemos a revolução do empoderamento. Estávamos preparados para o segundo filho. Ávidos por vivenciar de forma plena a nossa segunda gestação. Tentamos por outras vezes, mas sempre desistíamos poucos meses depois. Desta vez era diferente. Eu estava segura e liberta dos fantasmas. Ele seguia pelo mesmo caminho. E no dia 31 de julho de 2010 lá estava o nosso positivo.  Não sei quem comemorou mais, se eu, Osvaldo ou Giane que a essa altura cobrava uma irmã, dia e noite, noite e dia. A nossa “maior preocupação” era convencer nossa menina de que meninos também eram ótimos como irmãos. Para minha sorte, ela é mais flexível do que o pai.

Nossa primeira decisão sobre a gravidez foi preservá-la ao máximo de especulações desnecessárias como data provável do parto, local do parto, peso estimado do bebê. A confirmação de que teríamos mais uma menina veio às 17 semanas. Dá pra imaginar a festa?

E daí pra frente foi só curtição. A barriga crescendo e eu me sentindo cada vez mais plena. Como é bom estar grávida. Tudo era só festa até que por volta das 23 semanas, apareceu um bendito sangramento nasal. Corro pra verificar a pressão arterial e mais uma surpresa desagradável, 130 x 90 mmHg. Minha PA que era em torno de 100 x 50 mmHg, agora resolve me dar esse susto. O fantasma do parto hospitalar agora me rondava. E se evoluísse com uma hipertensão? Pré-eclampsia? Não, não, não. Eu não estava preparada para viver um processo de doença dentro da etapa mais fantástica da minha vida. Mais uma vez, o anjo Edilsa entrou em ação. Além dela, amigas especiais da maternidade e o diretor técnico também obstetra, Clemente Neto me ajudaram a voltar ao eixo. Dieta, exercícios físicos, meditação. A Rosário de antes estava de volta e ainda mais forte e preparada. Até que... 30 semanas e umas dores incômodas no baixo ventre passaram a ser uma constante. Tomei como normalidade e ignorei o quanto pude. Na semana seguinte a dores persistiram com certa intensidade a ponto de interferir no meu trabalho. Ligo para Edilsa que acha prudente proceder com uma avaliação. Alguns exames para afastar a hipótese de infecção e decidimos por diminuir o ritmo. Uns dois ou três dias longe do trabalho. No dia seguinte, ao me sentir melhor, resolvo ignorar a recomendação e volto ao trabalho. E as dores retornam. Desta vez eu já não conseguia nem andar direito. Onde eu passava as pessoas perguntavam se estava tudo bem. Uma colega enfermeira comentou que eu estava com cara de mulher em TP. Abri um leve sorriso, achando graça no comentário. Mas o negócio estava mesmo difícil. Numa das idas ao banheiro constatei um pequeno sangramento. Fui até a GO de plantão que disse ser essencial fazer um toque. Não gostei muito daquela idéia, mas não havia nada de diferente a fazer. E tcharam... colo pérvio e 2cm de dilatação. Quase caio para trás. Meu chão sumiu. Quer dizer que eu estava em TP prematuro? Minha filha nasceria antes do tempo? Teríamos que passar pelo sofrimento de uma UTI neo? Céus, como fiquei atormentada. Neste período, um outro anjo chamado, Regine Marton (parteira e doula)  já era uma grande conhecida e me dava um excelente suporte emocional. Ter Edilsa e Regine por perto, me ajudando a elaborar esses medos e a trabalhar a possibilidade de parto prematuro-hospitalar, foi um verdadeiro presente. Elas me fizeram olhar pra dentro de mim, me colocaram diante de minhas sombras, carinhosamente me forçaram a enxergar um lado meu que eu fazia questão de ignorar. Obrigada, meus amores. À vocês, minha eterna gratidão. Saí da maternidade quase sem poder andar. Fiz o corticóide e saí para casa com a recomendação de repouso e a prescrição de um inibidor de contrações. No dia seguinte, ainda com muitas dores, perdi o tampão mucoso. A cada sinal de TP, meu coração sangrava. Não foi aquilo que planejei. Pedi muito a Deus que me desse a chance de chegar a termo. Que aquilo tudo não passasse de um alarme falso. Mas as dores continuavam. Minha mãe veio ficar comigo. Tentava me tranqüilizar ao relatar o segundo parto dela. Vejam que ironia. A segunda gestação da minha mãe com DPP para 31 de março (idêntica à minha) e meu irmão nasceu no dia 14 de fevereiro. Mesmo com todas as evidências de que tudo ficaria bem, de que Manu não era prematura extrema, eu continuava inconsolável. Dois dias depois meu leite desceu. Acordei jorrando leite. Minha mãe chorou e disse que eu estava sendo egoísta, que Manu queria nascer e eu não deixava. Nossa como aquilo doeu. Daí foi a minha vez de desabar. Conversei muito com minha bebê nesse dia. Despi-me inteira para ela e disse o que eu esperava, quais eram os meus anseios, o que eu havia planejado para nós duas. Disse ainda que apesar das semelhanças entre as histórias de gestação minha e da minha mãe, tudo não passava de semelhança e que nós não precisaríamos repetir nada que não fosse bom para nós. Depois chamei minha mãe e pedi para que ela se esforçasse em respeitar as minhas dores e entender o meu desejo. E se ela não tivesse condições de me ajudar da forma que eu precisava, melhor seria que ela não estivesse ali. Pronto. Lavamos a roupa suja. E chegamos às 33 semanas com tudo pronto para receber Manu na hora em que ela quisesse vir. 34 semanas. 35 semanas. 36 semanas. E eu estava livre do cativeiro. Primeira providência: um banho de mar gostoso com uma boa caminhada na praia. Finalmente viveria o meu parto. Combinamos toda a logística para ser no meu apartamento, mas a banheira não cabia em nenhum dos cômodos. O parto na água era uma decisão irrefutável. Mas o que fazer? O anjo Edilsa teve a generosidade de abrir as portas de sua casa para nós. Fomos visitá-la algumas vezes, criamos vínculo com aquela casa linda, com aquele jardim maravilhoso, com aquela varanda sem igual. Aceitamos a oferta.

38 semanas e a maternidade onde trabalho organiza um curso de doulas comunitárias. Sou convidada a participar da abertura e da parte prática do curso. 38 semanas e 4 dias e lá estou, feliz da vida rebolando com o meu barrigão. Na quarta feira noto que as BH estão mais freqüentes e duradouras. Por volta do meio dia, decido cronometrar. Contrações indolores de 5 em 5 minutos, durando mais de 45 segundos durante duas horas seguidas. Ligo pra Edilsa para saber o que ela achava. Ela pede pra eu ligar pra Osvaldo e pedir que ele venha para casa. Tanto podia ser o TP engrenando como podia ser pródromos. Antes de ligar pra Osvaldo, escrevi uma carta de despedida da vida intrauterina para ela. 


Ligo pro homem e antes de anoitecer ele aparece em casa com o irmão a tiracolo. As contrações que se mantiveram do mesmo jeito dão uma desacelerada. PQP... o que raios meu cunhado estava fazendo ali? Me subiu uma raiva... Catei meu marido pro quarto e pedi uma explicação. Ele disse que não tinha culpa. Quando ele recebeu minha ligação, meu cunhado estava perto e como tinha algumas coisas pra resolver em Natal, resolveu pegar uma carona. Mais uma vez PQP... Ódio mortal. Meu plano era curtir meu TP em casa o máximo possível e só chegar na casa de Edilsa quando não estivesse suportando mais. Nossas casas ficam a 20 minutos de distância. Mas com aquele homem ali o que eu podia fazer? Como eu poderia me sentir a vontade pra expressar meu lado fêmea-selvagem? Como eu poderia dar vazão ao meu instinto mais primal sendo observada por um macho de outro clã? Me senti um bichinho acuado. E só me restava uma alternativa: me recolhi ao meu ninho e dormi. No dia seguinte acordo sem nenhuma dor. Cheia de preguiça, reluto em levantar da cama. Falo pra Osvaldo que aparentemente tudo continua do mesmo jeito e seria melhor que ele fosse trabalhar (na verdade eu queria que ele desse um sumiço no irmão... eheheh). Ao me levantar da cama, sinto algo escorrer pra calcinha. Vejo um pouco de sangue misturado ao líquido. Oba!!! Era TP. Era TP. Sete da manhã e mais uma ligação pra Edilsa. Osvaldo não consegue conter a emoção e logo todos percebem que Emanuela está chegando. Meu cunhado pergunta pra qual maternidade nós iremos (nessa hora fiz uma cara de poucos amigos e acho que ele percebeu). Percebo que as contrações estão mais próximas, 3 em 3 minutos, mas continuam indolores. Decido levantar acampamento pra me livrar daquele encosto. Aviso a Edilsa da mudança de planos. Ela, que estava ministrando o curso de doulas na maternidade, juntamente com Regine, decide não ir ao curso naquele dia e fica me esperando em sua casa juntamente com Nívia (enfermeira-obstetra) que a ajuda na arrumação do quarto e no enchimento da banheira. Regine assume a turma e combina para que logo termine a aula vá ao nosso encontro.

Assim que chegamos por volta das 11:30, vamos arrumar a suíte em que ficaremos. Levo meus lençóis floridos (inspirada nas palavras da minha querida Waleska Nunes) e alguns objetos para tornar o ambiente o mais próximo possível do nosso lar. Depois de tudo arrumado, Edilsa pede para fazer o único toque previsto em meu plano de parto. Após constatar os 5 centímetros, nos sentamos à mesa com toda tranqüilidade do mundo para almoçar (que delícia de refeição). 


Neste momento as contrações estão de 2 em 2 minutos, as vezes até em menos tempo e surgem as primeiras sensações de dor na região lombar. Após descansar o almoço, Giane, que estava decidida a acompanhar o parto do início ao fim, pede pra colocar o maiô e experimentar a banheira. E eu decido ir junto. Quando entramos naquela água gostosa ela me convida a sair já que logo logo a irmã vai nascer ali dentro, a banheira vai ficar suja de sangue e ela não vai mais poder entrar.


E lá vou eu pra varanda papear um pouco.

Ali ficamos caminhando, dançando, contando piadas e, entre uma contração e outra, Osvaldo me faz massagens. Por volta de 13:00h Regine chega, almoça e vai ao nosso encontro na varanda. Mais exercícios com Nívia e Regine. As dores progridem e, a cada contração já não consigo acompanhar as conversas paralelas. Às 14:00 começa a minha despedida do mundo racional. A partolândia me espera. Meu último pedido consciente é que me levem à banheira. Regine me acompanha e põe um Cd com barulho de golfinhos. Entro e me largo por inteira na banheira me deixando conduzir pelo balanço das águas e pelo som. A partir de então uma avalanche de sentimentos, sensações e contrações me inundam. Um grito desvairado sai de dentro de mim, um grito que vem de dentro, que vem lá do útero. Eu sentia vontade de urrar, de uivar, de devorar o mundo. Edilsa, Nívia e Osvaldo correm para me ver. Giane, que estava na sala assistindo TV, pede para me ver. Eu já havia autorizado a sua presença durante o nascimento. Durante muito tempo conversamos sobre a sua participação no parto da irmã e a deixei livre para escolher estar ou não presente. E mesmo apreensiva, ela optou por assistir. 


Falei pra Edilsa que Emanuela estava nascendo. Ela pediu pra tocar e ter certeza. Não permiti. Eu disse que só autorizaria um único toque e ele já fora feito. Osvaldo quis me massagear numa tentativa de aliviar aquele desconforto. Levou porrada, pobrezinho. Naquele momento não queria ninguém pondo a mão em mim. Assumi uma posição de cócoras apoiada sobre os joelhos e ali fiquei sentindo os puxos que eram cada vez mais fortes. Acho que ninguém acreditava numa evolução tão rápida, afinal a previsão era de que nascesse só no finalzinho da tarde. Mais um pedido para tocar e desta vez Edilsa tentou encostar em mim. Tadinha levou um baita tapa na mão também. Decidi eu mesma por a mão e foi quando senti os cabelinhos da minha cria. Como deixei todos de mãos atadas não restava mais nada a se fazer, a não ser cantar. E foi o que Osvaldo fez. Trouxe para aquele banheiro uma das músicas que mais marcaram toda a nossa gestação. “Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais.” Formou-se um verdadeiro coral no banheiro. Giane ao longe dizia, “força mamãe você vai conseguir porque você é forte e corajosa”. Ainda tive ânimo para perguntar se eu também era linda. Momento de descontração e risos e agora inicia-se a etapa do círculo de fogo. Totalmente voltada para dentro de mim, sabia que o momento final estava próximo. Ali mesmo senti saudade da gravidez. Revivi todo o processo em minutos. Como eu me senti agraciada por aquele momento, por ter aquelas pessoas ao meu lado, por saber que a minha filha chegaria num parto lindo e respeitoso. Agradeci a Deus e desejei aquilo ali pra todas as mulheres.

O intervalo entre as contrações aumentou e nesta hora a cabecinha de Emanuela estava fora. Olhei uma última vez pra Osvaldo e Giane e presenciei no rosto dela o mais belo sorriso. E veio a contração que fez o corpinho da minha Manuzinha escorregar gostoso de dentro de mim em direção à água. Que sensação maravilhosa. Ela ficou ali, nadando enquanto eu desvirava para apanhá-la em meu colo. Nosso primeiro abraço. Aquele corpinho deliciosamente gosmento enroscado ao meu. O riso grato e o choro emocionado competiam pelo mesmo espaço.



Ficamos mais um pouco até que decidi sair para expulsão da placenta. Enquanto Nívia enxugava Manu sob o vigilante olhar de Giane, recebi a placenta em minha mãos. Edilsa e Regine a examinam e me deixam tocar nela para nossa despedida. Agradeci por ela ter feito tão bom trabalho, abracei-a e a destinei a um jambeiro no jardim de Edilsa.





Tive uma pequena laceração que não precisou de sutura. Um sangramento a mais que se resolveu com massagens e compressa de gelo sobre o ventre. Caminhei até a cama, me acomodei entre muitos travesseiros, tirei toda a roupa e a peguei colo. De imediato ela procurou o peito e mamou a mamada dos justos. Ali ficamos nos paquerando por horas e horas. Sentia como se estivesse cruzado a linha de chegada de uma maratona. Cansada, feliz e recompensada. A minha família estava completa. O meu sagrado feminino, enfim foi resgatado. Dali pra frente eu só tinha uma certeza, nada mais seria como antes.


Minha lista de agradecimentos é imensa. Em primeiríssimo lugar, minha gratidão ao meu Deus, Pai bondoso e fiel que cuida de mim. Ao meu marido Osvaldo, a maior surpresa da minha vida. Durante o TP foi pai, marido, doulo, tudo na medida certa. Empoderamento é o sobrenome dele. À minha filha Giane, a melhor irmã-mais-velha que Emanuela poderia ter. Edilsa, que foi mais do uma obstetra, foi uma mãe generosa. À Regine que, mesmo me conhecendo já numa fase avançada da gravidez, tanto acrescentou a este momento. Às amigas da maternidade (Deborah, Angélica, Dani, Jocileide, Perpétuo, Giana, Ana Verônica e tantas outras queridas) que me acolheram e me estenderam muito mais do que a mão nos momentos difíceis. Meu agradecimento especial a todos os presentes no momento do parto (Nívia, Larissa, Jane, Tiago, Romi). Cada um de vocês teve sua devida importância para abrilhantar o grande dia. Às minhas deusas-sagradas, amigas Mamíferas Radicais, espalhadas pelos quatro cantos do mundo que com palavras doces e alguns bons sacolejos me ajudaram a encontrar o caminho da luz. Enfim, meu muito obrigada. Eu vejo flores em vocês.



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